terça-feira, janeiro 26, 2010

Solidão

Estava só, sentado rente ao balcão de madeira, do bar de sempre, preso entre a fumaça dos cigarros e a sinfonia estridente das gargalhadas alheias. Tentava prever o futuro nos reflexos espumados do fundo do copo de cerveja, que brilhavam mal sintonizados e rasgavam meus olhos a cada vez que eram interrompidos pelo som, não menos brilhante, da morte das bolas de sinuca. Morriam uma a uma, depois renasciam todas e morriam mortes diferentes, dançando ao som das probabilidades infinitas.d

Sem pedir licença, sentou-se ao meu lado, vestindo trajes negros e, de certa forma, inadequados ao local. Ofereceu-me um drink, que aceitei, depois de relutar por alguns milésimos de segundo.

Seus lábios, incrivelmente vermelhos, moviam-se lentamente, dançando calmos, enquanto contavam-me sua vida. Ouvi atento, como de habitual.

Não contavam casos comuns, daqueles que se ouve de entre os dentes de qualquer pessoa. Relatava delírios, tentava abrir meus olhos míopes, cantava aos poucos, em melodia simples, os poucos vestígios de verdade que moravam escondidos nas entranhas das barrigas gordas, nas rugas precoces das crianças envelhecidas.

Falou sobre a insegurança da última partícula de poeira refugiada nas juntas do armário mais alto. Mostrou que, na pequena rachadura no teto, no topo da pilastra desgastada, vivia uma aranha de pernas frágeis, uma delas fatalmente decepada, em um acidente além da imaginação.

Apontou para o velho cravo, cravado no canto da boca de uma mulher, que tinha o rosto feito de pedra. Fez com que eu observasse a velha moeda, aprisionada entre duas tábuas do piso de taco.

Mostrou-me o cano sujo, por onde podia-se ouvir as conversas das baratas e ratos, que por ali passariam quando as luzes se apagassem.

Vi a marca de aliança, que se rebaixava de tristeza entre as falanges inchadas do homem com cabelo de boneca. Senti o calor gelado que evaporava por entre as pernas da mulher mais exibida.

Examinei as marcas do desgastado cinto de couro, que de furo em furo, se alargaria até o fim. Senti a dor pesada do sapato velho, que sonhava inutilmente em, um dia, se tornar um chapéu. Sapatos não viram chapéis.

Os quadros tortos se equilibravam satisfeitos, orgulhosos por exibir dentro de si, fotografias de homens, a maioria já mortos, que também não faziam a menor questão de se alinhar. Eram apenas quadros?

Depois de ouvir todas as palavras e deslocar meus sentidos confusos à lugares ínfimos; Depois de me perder e me encontrar, diversas vezes, nos sabores íntimos da invisibilidade e descobrir todos os segredos e todas as possibilidades, olhei em seus olhos e disse:

-Sua presença não é, nunca foi e nunca será um mistério para mim. Todos os segredos, sob a mira sagaz do seu olhar, se tornam translúcidos, transparentes. Na sua presença, todas a mentiras, não tendo onde se esconder, se tornam verdades.

Solos operísticos, drinks vermelhos, batons alcoólicos, peles inadequadas. Bocas manchadas. É lá que você habita!

Em minha paixão eterna, regada a cerveja e observação, onde morre a angústia e nasce a devoção, você vive!

Em algum lugar, entre a santa excomungação e a amaldiçoada santificação, você prevalece!

Me transforme em pó, me reduza ao mínimo, para que eu possa morar junto às pulgas que picam o couro do menor passarinho e interromper, com meu dedo mindinho, o fluxo sangrento da agulha do pernilongo!

Me faz sempre pequeno e astuto, compre-me todas as escrituras dos cantos empoeirados, das pequenas rachaduras, do espaço entre as tábuas dos pisos de taco! More comigo em todos estes lugares ao mesmo tempo!

Faça isso que te peço e prometo te receber sempre, fiel e determinado! Morre e nasce em mim, meu eterno amor, minha companheira fiel, minha maravilhosa dama de negro!

Nunca permitirei que se sinta só, minha amada, minha maldita e abençoada, minha Solidão.