sexta-feira, setembro 25, 2009

Dois sapatos diferentes

Outro dia me deu vontade de usar dois sapatos diferentes, ou melhor, dois tênis.

Tomei um banho, coloquei uma roupa qualquer, abri meu armário e peguei um tênis de cada cor.

Apesar serem de cores diferentes, eram do mesmo modelo, afinal de contas, não queria andar manco por aí, no entanto, se eu quisesse andar manco ou descalço no meio de todo mundo, se me desse essa vontade, colocaria em prática sem pensar duas vezes.

Peguei o carro, sai da garagem e tomei meu rumo para um desses botecos quaisquer, que existem aos montes em Belo Horizonte.

Dirigi mais de meia hora até encontrar esse muquifo que, não sei por quais razões, me despertou a vontade de parar e sentar para tomar alguma coisa. O lugar tinha o nome de um pirata, desses famosos, que não me lembro agora.

Sentei em uma mesa perto da sinuca que, coinscidentemente, tinha quatro sapatas diferentes, uma em cada uma de suas quatro patas, que também eram diferentes entre si.

Observei os pés das cadeiras de aço, dessas que são comuns em botecos. Não havia nenhum pé, dentre às dezenas de pés de cadeira ali presentes, que fosse igual aos outros.

Nesse momento eu já estava meio desconfiado, achando que estava sonhando, ou coisa assim, e resolvi pedir uma cerveja, porque, se fosse sonho, iria me fazer sonhar melhor e sairia de graça.

Chamei o garçom.

Estava meio distraido, perdido em minhas divagações, quando ouvi o barulho do garçom chegando perto da minha mesa. Me virei para olhá-lo e levei um dos maiores sustos da minha vida!

O garçom era um pirata. Um de seus olhos era tapado, usava um chapéu de corsário em sua cabeça e, de sua face, brotava uma barba gigantesca. Em seu ombro, havia uma imitação de papagaio empalhado. Em uma de suas pernas usava uma bota preta que subia à altura do joelho, na outra, por mais incrível que pareça, usava uma perna de pau, não dessas de mentira, falsas. Uma perna de pau suja, velha e verdadeira.

Nos olhamos por alguns segundos e, como eu observava ainda assustado, os seus dois pés diferentes, ele, naturalmente, observou os meus, que também estavam vestidos diferentes.

O pirata então, fez um movimento estilo "deixa pra lá, cada um na sua" com os ombros, abriu a cerveja, encheu meu copo até a metade e já ia embora, quando me olhou e disse:

- Rapaz, as diferenças estão por aí, por todo lado.
Tem gente que enxerga algumas delas.
Tem gente que prefere fingir que não existem e se alienam, no mundo fechado dos seus condomínios de granfino.
Têm uns que acham que são diferentes e não são, outros, são diferentes e não percebem.
Existem também aqueles, que talvez sejam os mais comuns entre os diferentes, que são os diferentes recalcados, reprimidos, e que, apesar de ter consciência das suas peculiaridades, fazem de tudo para parecer normais. Esses são patéticos, são covardes, são a escória.
Eventualmente, encontra-se tipos como eu, que por um motivo maior, se tornaram primeiro diferentes por fora, para depois se tornarem diferentes por dentro.
O contrário também acontece, porque também existem pessoas que, são tão diferentes por dentro, que essa diferença transborda, de forma incontrolável, para o seu exterior. Esses são os mais perigosos, são os temidos loucos. São considerados loucos, não por que tem algum problema mental, o que ocasionalmente acontece. São vistos como loucos, perante a sociedade, porque, de alguma forma, sua diferença é tão incontrolável, indomável, que se transforma em uma ameaça à ordem confortavelmente estabelecida. Esses são os meus favoritos.

Em qual desses tipos você se encaixa, rapaz?

Depois de pensar por um ou dois segundos, eu respondi:

- Sou o diferente louco, porém inteligente. Inteligente, porque sou sagaz ao ponto de ser uma grande ameaça à ordem, porém, sei me vestir de inofensivo, de forma tão convincente, que me aproximo, sorrateiramente, das camadas mais sólidas e impenetráveis da sociedade e do inconsciente das pessoas, sem que ninguém perceba, sem acionar nenhum alarme.
Sou louco, porque lá, nesses lugares mais bem protegidos, planto a minha semente de loucura, depois saio, sento em meu camarote, acendo um cigarro, abro uma cerveja e, vitoriosamente, assisto o circo pegar fogo.
Sou o coringa do baralho. Sou o lobo em forma de cordeiro.

Os olhos, ou melhor, o olho do garçom pirata se arregalou. Virou-se e saiu mancando, conversando com seu papagaio falso, sem mover os lábios, como se fosse um ventríloco.

Terminei minha cerveja, paguei a conta e fui embora. Chegando em casa, liguei o computador, escrevi e enviei um e-mail, contendo uma das minhas sementinhas.

No outro dia, mais rápido do que esperava, a resposta estava lá, louca, em chamas. Então, sentado em minha cadeira, acendi um cigarro e abri uma cerveja. Vitorioso!

Quanto aos sapatos diferentes, não pretendo mais usá-los dessa forma. Percebi que chamam muita atenção e atrapalham meu disfarce. Usei só dessa vez, como experiência, porém, por debaixo dos meus sapatos comuns e discretos, que uso normalmente, visto e sempre vestirei, meus próprios pés, que serão sempre, embora de forma sutil, diferentes um do outro e dos milhões de outros pés, que pisoteiam e pisotearão o chão desse mundo, que é um só.

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3 comentários:

  1. Me sinto assim... diferente.
    Um pouco as vezes covarde...
    Outras plantando o caos...
    ... e na maioria das vezes sufocada com tantos pensamentos,idéias e sonhos que paro, respiro, coloco algumas coisas em prática, mas não tudo por falta de tempo e espaço. Que logo quando começo a pensar de novo... Fico frustrada, por me acharem normal demais, e aí... a oportunidade vai embora, desaparece.
    É sou assim.
    Na maioria das vezes tento ser a mais invisivel possivel.
    Mas quando me conhecem sou a diferente inesquecível... dizem os amigos.
    Parabéns Morgam pelo seu trabalho, por esse blog que conheci hoje e que adorei!!!
    Gestos pequeninos as vezes mudam um pouco a vida das pessoas que estão ao nosso redor.
    E por incrível que pareça o fato de você ter feito parte da minnha banca de TFG mudou algo!!!
    Realmente você é diferente!!!
    Abraço e muito sucesso!!!

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  2. Muito obrigado, seja você quem for!! Sucesso para você também!

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  3. Alienação, palavra que não existe no meu vocabulário, como sempre digo por ai:
    "esse é o meu jeito Pablo de ser..."
    To pouco me lixando pelo que os outro diz ou pensam, o que importa pra mim é exatamente o que eu busco: A FELICIDADE, e para encontrá-la sou capaz de fazer o que for, a qualquer hora e em qualquer lugar, um trecho de uma música que acho que tem haver comigo:

    Sou guerreiro
    Eu não vim aqui pra pedir
    O que eu quero eu vou conquistar
    Se agora é hora de ir
    To na estrada
    Sigo em frente
    Eu não penso em desistir
    E nem mesmo em me consolar
    Tenho medos mas mesmo assim
    To na estrada
    Sigo em frente
    (Pitty - Guerreiros São Guerreiros)

    Isso é um pouco de mim...

    Pablo Lopez

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