terça-feira, setembro 22, 2009

A escova de dentes e o artista

Não preciso falar mas falo mesmo assim, que o espírito de todo artista é grande demais.

Tudo para nós parece ser maior do que realmente é. Ou será que tudo para nós é do tamanho exato que precisamos que seja?

Uma escova de dentes rosa, pousada dentro de uma xícara azul no movelzinho do meu banheiro verde não é só uma escova de dentes. Se estivesse lá sozinha, poderia ser só mais uma escova de dentes sim, mas não, ela está lá, bem ao lado da minha, que é roxa.

Hoje, enquanto repetia pela milionésima vez a cena patética de fazer a barba, que por sinal, parece que quanto mais eu faço mais cresce, olhei lá, por segundos que pareceram horas, aquela maldita escova de dentes.

Uma escova de dentes era pra ser só uma escova de dentes. Vamos na farmácia e vemos diversas delas, estáticas, tristes, esperando por um dono, por um significado.

Pode ser que uma pessoa compre uma para pentear as sobrancelhas, outra para engraxar os sapatos, outra para limpar alguma sujeira difícil em algum outro lugar. Pode ser até que alguém compre uma escova de dentes para pintar algum quadro, respingar gotinhas de tinta em uma tela ou papel. Elas funcionam muito bem para isso.

A maioria das pessoas compra para escovar, esfregar e polir os dentes, claro, ou não se chamaria escova de dentes.

Neste caso específico, comprei um pacote de três, uma de cada cor, simplesmente para não faltar quando eu precisar de outra. Faltar... Palavra dura que só aparece quando te falta alguma coisa mesmo.

Por motivo de amor, a graciosa escova de dentes rosa foi parar nas mãos, ou melhor, na boca de outra pessoa, que é também, absolutamente graciosa. Parece que as duas foram feitas uma para outra.

Amor... Quem não é artista não conhece o amor. O amor de um artista é esmagador, destruidor, queima, arde, consome o corpo e vira a alma ao avesso. Poderia escrever quilômetros sobre o amor.

Hoje cedo, aquela escova de dentes ainda estava lá, parada, imóvel e sem vida. Sua mestra partiu para explorar outros mundos, viver a vida de outros modos e não quis que a minha escova de dentes roxa fosse com ela.

Ainda acho que dentro do meu banheiro verde, as duas escovinhas de dente, rosa e roxa, dentro da xícara de cerâmica azul, se completavam e, de maneira misteriosa, murmuravam segredos e confidências uma à outra.

Mas tudo bem, digo para mim mesmo. Da próxima vez tentarei uma outra cor. Talvez um amarelo ou vermelho, para formar uma paleta de cores menos fria.

Enquanto isso, agora, a graciosa, porém solitária escova de dentes rosa está sendo velada, numa cerimônia fúnebre triste, negra. Juntar-se-á a um punhado de outros objetos simples e bobos que, pelos meus olhos de artista, ganharam vida além da própria vida.

Um dia, quando atingir a velhice, juntarei todas essas coisas e objetos e farei um quadro. Um quadro que respirará e ganhará vida própria, que aprisionará todos os significados, símbolos e arquétipos do mundo em uma coisa só.

Então a minha querida e velha amiga, a Morte, quando vier me visitar, olhará para essa obra e me dirá, olhando profundamente dentro dos meus olhos velhos e cansados: - Meu caro, você viveu!

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3 comentários:

  1. Quando vi aquela escova verde jogada na pia do meu banheiro, não pensei duas vezes, lixo. Ele me fez tão mal que dou meia volta se o vejo na rua. E o esquisito que somente a escova dele que habitou o meu banheiro. Os outros que foram ótimos amantes nem se quer dormiram por aqui. A escova verde sempre me incomodou. Mesmo quando achava que estava tudo bem. Sua presença me trazia um incomodo. A pasta dental que ele usava me dava enjôo so de olhar. Aquela combinação de erva não sei o que com o verde da escova me fazem estremecer. É, o sentimento que ficou, não foi nada bom....

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  2. Rapaz, sei que isso não serve de consolo, mas a antiga dona dessa escova é burra demais.

    Agora sou velha, mas já perdi a oportunidade de viver e receber um amor grandioso, que vinha de um grande artista, assim como você.

    Como você mesmo disse, o espírito do artista é grande demais. Tem gente que não aguenta.

    O tempo passou rápido, 30 anos ou mais...

    O que me sobrou foi só um gosto amargo de arrependimento. Todo dia o mesmo gosto.

    Escreve muito bem! Continue assim!

    Abraços,

    Márcia, Fortaleza - CE

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  3. Olá Márcia,

    Obrigado por comentar!

    Bom, ela não é burra não,muito pelo contrário.

    Só queria seguir seu caminho. Fez sua escolha.

    Espero que ela seja feliz!

    Um abraço,

    Rafael Morgan.

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